Apresentação
O uso de medicamentos e outras drogas é um tema complexo e multidimensional. Para as substâncias prescritas envolve desde o acesso, a logística e a adequada indicação, além das legislações pertinentes e para as não prescritas inclui o status de legalidade-ilegalidade. O Observatório do uso de medicamentos e outras drogas (Observa-medicamentos&drogas) agrega pesquisadores, gestores, trabalhadores do SUS, estudantes e usuários de medicamentos e drogas e familiares para produzir conhecimento, análises e reflexões que possam subsidiar o debate público e a tomada de decisão política acerca do uso de medicamentos e outras drogas, além de contribuir para a formação acadêmica, dos trabalhadores usuários dos serviços de saúde sobre o tema. O observatório visa à ampliação de diálogo com a sociedade a respeito organização de serviços públicos de saúde, educação e assistência social para as questões de acesso qualificado e abordagens terapêuticas no contexto do uso de medicamentos outras drogas contribuindo, inclusive, para a qualificação do debate sobre o uso medicinal da maconha.
Medicamentos
Há muitas questões a serem observadas, analisadas e respondidas no universo do uso de medicamentos no Brasil, sendo as prioritárias para Observatório os itens a seguir
Acesso a medicamentos
O acesso aos medicamentos necessários ao tratamento e prevenção de doenças é um direito humano que deve ser garantido pela sociedade. No entanto o sistema nacional de saúde, com frequência, não consegue atender às necessidades das pessoas nesse campo. Hunt e Kosla (2008) destacam que os objetivos de Desenvolvimento do Milênio, como a redução da mortalidade infantil, melhoria na saúde materna e combate ao HIV/AIDS, malária e outras doenças, dependem de melhor acesso a medicamentos. A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas declaram que o acesso a medicamentos essenciais é um elemento fundamental do direito à saúde e, no Brasil, decisões judiciais favoráveis a demandantes por medicamentos se apoiam tanto nessa declaração quanto na própria legislação do Sistema Único de Saúde.
As dinâmicas populacionais modificam as necessidades de medicamentos, como, por exemplo, o envelhecimento populacional, que tem ocorrido em todo o mundo, mas com maior velocidade nos países em desenvolvimento e que implica em maior utilização dos serviços de saúde, aumento da prevalência de doenças crônicas e do uso de medicamentos. As doenças crônicas tem efeito especialmente devastador em países nos quais onde há grande desigualdades sociais, populações pobres e vulneráveis (WHO, 2014). Além disso, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem enfatizado a importância das doenças crônicas por meio de programas e relatórios, exigindo maior atenção dos governos, principalmente de países em desenvolvimento onde há menor capacidade de prevenção e controle, para a relevância do tema tanto para a saúde como para a economia (WHO, 2014).
Além dos idosos, pessoas com doenças raras, caras e que requerem cuidados por longos períodos, são frequentemente afetadas por dificuldades no acesso a medicamentos, mas esse é um problema também para as pessoas com poucos recursos mesmo para doenças comuns e frequentes.
Acesso ao tratamento adequado dos problemas com drogas e de outros transtornos decorrentes do uso de medicamentos
O recente levantamento nacional de uso de drogas no Brasil avaliou o uso de medicamentos não prescritos por profissionais da saúde ou utilizados de forma diferente da prescrita, incluindo benzodiazepínicos, anfetamínicos, barbitúricos, anabolizantes, analgésicos opiáceos e anticolinérgicos. Nesse levantamento, as classes de medicamentos mais consumidas de forma não prescrita ou diferente da prescrita foram a de benzodiazepínicos (3,9%), a de opiáceos (2,9%) e a classe dos anfetamínicos (1,4%) (Bastos et. al, 2017). De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas de 2018, do Escritório da Organização das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, o uso não medicinal de medicamentos sob prescrição está se tornando uma enorme ameaça para a saúde pública e para o cumprimento da lei no mundo. Segundo o relatório, a apreensão global de opioides farmacêuticos em 2016 foi de 87 toneladas, aproximadamente a mesma quantidade de heroína apreendida naquele ano (ONU, 2018).
Cerca de 31 milhões de pessoas que usam drogas, lícitas e ilícitas, sofrem de transtornos relacionados ao uso, sendo os riscos e os danos associados a ele mais elevados entre os jovens. Esses problemas podem não ser facilmente identificados, principalmente na ausência de sistemas de vigilância confiáveis e de políticas que promovam o uso seguro e racional dos serviços de saúde e que previnam uso problemático. Porém, mesmo quando identificados há dificuldades em se lidar com sua resolução. Os próprios serviços de saúde podem, inclusive, gerar uso inadequado de medicamentos e, assim, contribuir para o seu deslocamento para uma posição semelhante à das drogas ilícitas. Isso pode ocorrer tanto pela falta de seguimento de tratamentos que deveriam ter período de uso limitado, como pela indicação inapropriada. Nesse contexto, é importante que se discutida a medicalização da vida, fenômeno por meio do qual as questões da vida cotidiana sofrem interferência da medicina, sobretudo com o uso de medicamentos para “tratar” problemas que não são fundamentalmente de saúde. Entre os temas de interesse nesse cenário, tem-se, por exemplo, o consumo de ritalina entre crianças e adolescentes e o uso irracional de benzodiazepínicos.
Considerando que a inadequação do uso de medicamentos pode resultar em eventos adversos é importante realizar estudos de utilização e promover ações para racionalizar seu uso.
Do ponto de vista do uso de drogas não prescritas, as abordagens para o tratamento dos problemas associados ao seu uso têm encontrado limitações no âmbito da política de drogas nacional, que vive tempos de disputa contra as medidas mais progressistas que vinham se desenhando, no sentido da perspectiva dos direitos humanos e da redução de danos, recrudescendo ações criminalizadoras e segregadoras, em instituições privadas.
Participação do usuário nas decisões sobre o uso de medicamentos e drogas e seu direito à decisão orientada por evidências e por valores
Embora a produção de conhecimento científico seja de fundamental importância, não garante por si só a sua utilização na prática. Desse modo, tanto a obtenção, mas principalmente a transposição do conhecimento científico para sua implementação no cuidado à saúde são processos decisivos na adoção de decisões baseadas em evidências, o que tem sido denominado de tradução do conhecimento (Graham et al, 2006).
A tradução do conhecimento tem por objetivo ampliar o uso da evidência científica na clínica e na tomada de decisões em saúde pública bem como identificar lacunas no conhecimento para nortear pesquisas futuras. Trata-se de um processo participativo, que promove contato direto entre os pesquisadores e os tomadores de decisão (médicos, se a decisão for clínica, ou gestores, no caso de políticas públicas, e a comunidade em ambos os casos). Desse modo, envolve tanto a síntese de evidências, como a apresentação dos resultados para intercâmbio de informações e impressões, e o desenvolvimento e emprego de métodos para promoção do acesso ao conhecimento obtido (Lavis et al, 2005; Lavis et al, 2009). Também diz respeito à capacidade de simplificar e apoiar uma efetiva troca de informações entre a universidade, os profissionais de saúde e os pacientes ou a comunidade, a fim de alcançar decisões de saúde informadas por evidências que sejam congruentes com os valores e preferências dos pacientes, sobretudo quando a evidência científica não esclarece de forma inequívoca qual a melhor conduta - o que é conhecido como decisão compartilhada quando trata de uma decisão sobre o cuidado de um paciente ou participação social quando diz respeito a decisões para uma comunidade (Wensing, Grol, 2019).
Embora o termo seja relativamente novo, pode-se afirmar que a subutilização das evidências científicas obtidas no meio acadêmico na prática do cuidado em saúde é uma preocupação antiga (Ward et al, 2009). São descritas como principais barreiras o idioma, particularmente porque a grande maioria dos artigos científicos são publicados em inglês; o vocabulário científico; o processo de desenvolvimento das diretrizes, a falta de transparência em relação aos conflitos de interesses e revisão da literatura; a dificuldade de transposição das realidades; a cultura e os hábitos dos usuários da informação; e a falta de sistemas de tecnologia da informação, de forma a disponibilizar as informações no ponto de cuidado (WARD et al, 2009; McGLYNN et al, 2003; STRAUS et al, 2009).
O Observa-medicamentos&drogas deve atuar na tradução do conhecimento sobre os temas abordados, considerando perspectivas contemporâneas que buscam combinar a evidência científica com valores, necessidades e desejos dos usuários e seus familiares (FULFORD, 2011), o que deve ampliar a participação da sociedade no debate relativo ao uso de medicamentos e outras drogas.
Maconha
A Cannabis sativa L. é uma planta milenar, com usos para finalidades diversas ao longo da história, em distintas realidades étnico-culturais. Embora seus usos terapêuticos sejam identificados largamente, especialmente no Oriente, no meio médico suas propriedades são relatadas por volta do século XVIII. Desde sua inclusão como preocupação de ordem pública, expressa na II Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924, em Genebra, protagonizada por representante brasileiro, prevaleceram proposições de políticas baseadas em seus efeitos psicotrópicos e riscos decorrentes, o que mais tarde se consolidaria globalmente com sua inclusão na lista de substâncias perigosas, no relatório da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961. À despeito da proibição, a maconha é a droga ilícita mais utilizada globalmente, estimando-se em mais de duzentas e dezenove milhões de pessoas aquelas que fizeram uso no último ano.
Holanda, Canadá, Austrália, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália, Argentina, África do Sul, Colômbia, México são alguns dos mais de 60 países que possuem alguma regulamentação nacional sobre o uso da maconha. Nos EUA 15 estados, além da capital federal legalizaram o uso recreativo e outros 16 o descriminalizaram; 36 estados permitem alguma forma de uso legal para fins médicos. O Uruguai, em 2013 e o Canadá, em 2018, foram os dois primeiros países a legalizar mais amplamente seu cultivo, comércio e consumo para o uso não-médico.
Ainda que maconha seja usada em taxas semelhantes por pessoas negras e brancas em toda a América, pretos e pardos são desproporcionalmente visados e prejudicados por sua criminalização, sujeito a paradas, revistas, prisões e condenações por crimes relacionados à maconha ofensas por causa de sua raça.
A descriminalização é uma das modalidades que vêm sendo implementadas no sentido de políticas alternativas à proibição e ao punitivismo. A regulamentação legal oferece uma oportunidade de reparação às comunidades desproporcionalmente afetadas pela proibição, sujeitas a maior policiamento, criminalização e encarceramento.
A criminalização estigmatiza e aumenta as barreiras para a garantia de direitos como trabalho, moradia e direitos familiares, com impactos duradouros reduzindo drasticamente oportunidades, especialmente para migrantes, mulheres, pessoas negras e indígenas, e populações de baixa renda, residentes em territórios periféricos. Movimentos sociais e pesquisadores internacionais, têm se mobilizado para garantir que os esforços de regulamentação centralizem a justiça racial como forma de enfrentam os danos provocados pela criminalização.
Referências
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